Serenar quem acreditava, quem hesitava e quem não acreditava era necessário.

 

Precedeu à revolução dos cravos: nasceu onze anos antes. Olhava Santiago da Serra há pouco mais de um ano e raras vezes tinham sido as ocasiões em que ali se tinha deslocado antes de ir realizar o exame da quarta classe à escola primária principal da Vila, que continuava o alinhamento perfeito do edifício dos Bombeiros Voluntários. Tinha lá ido ao médico com o seu pai e fazer a matrícula no Ciclo Preparatório, e pouco mais. Só depois de ir para o primeiro ano do Ciclo Preparatório é que começou a descobrir Santiago da Serra.

Na sua seletiva memória persistiam momentos inapagáveis. Primeiro os amigos que ganhara, ganhara-os para a vida. E depois um acervo de memórias que foi guardando e que ia escrevendo conforme a vida lhe permitia.

Até 25 de abril de 1974 nada de especial reluzia em Santiago da Serra, que ele pressentisse. Depois desse dia um burburinho atravessou a pacatez do concelho. Curioso! De um momento para o outro tantos eram do contra e muito poucos eram fervorosos apoiantes do regime deposto.

Foi a primeira vez que lhe doeu o entendimento. Seguiu em frente. Assistiu nos meses posteriores a horrores bem piores e a metamorfoses da condição humana que pediam meças a um qualquer deserdado da fortuna.

A partir de 1976 tudo começou a regressar à normalidade, restando unicamente as feridas abertas pela malvadez praticada e sem honra nem dignidade, esta é aquela que demora sempre mais a curar ou nunca cura.

Os anos foram passando. Em Santiago da Serra pontificou a direita. A verdade é que não podia ser doutra forma. O concelho fora desde tempos imemoriais extremamente conservador, geneticamente nunca se configurara à esquerda, e não era uma revolução de esquerda que o ia colocar a votar nessa direção, a não ser que os senhores que titulavam as casas nobres e, na prática, detinham o poder, indicassem o voto à esquerda. Não o fizeram. Diretamente ou tacitamente não tinham tido problemas com o regime anterior e identificavam-se, obviamente, muito mais com um poder de direita no concelho. Assim sendo, Santiago da Serra firmou um poder de pendor social-democrata.

A direita governou durante 14 anos, deixando o poder quando o derradeiro presidente de câmara decidiu abandonar a causa pública. Dois candidatos dessa direita galvanizaram-se para conquistar a Câmara. A sorte coube ao candidato da esquerda. Uma maioria relativa deu-lhe a coroa de louros, firmando o poder da esquerda por 24 anos. Mas nem tudo é infinito: a lei fintou-lhe o campo de ação e obrigou-o a sair do jogo. Não sai porque quer, sim porque teve de ser.

Órfão, a esquerda fez avançar um candidato que não era mais que o herdeiro do ainda senhor de Santiago da Serra. Um erro crasso. Nem com o menino pela mão ele chegaria ao destino.

No jogo do regresso da direita ao poder, nessa terrível certeza, uma certeza que se foi jogando ao longo do tempo em Santiago da Serra e que se pressentia nos dois meses em falta, percebia-se a angústia da esquerda, pois o jogo praticamente estava jogado. Sim, digamos que estava jogado, mas era necessário cuidado, muito cuidado, cuidado e caldos de galinha, pois havia pedras no tabuleiro de xadrez que deviam e tinham de ser movidas com muita minúcia e sageza, tendo em conta uma multiplicidade de fatores. E acima de tudo, havia que conversar com todos, pois era fundamental não deixar ninguém infeliz. Por vezes basta uma palavra ou um simples sorriso ou uma frase de garantia no meio de mil frases que recheio um discurso. Serenar quem acreditava, quem hesitava e quem não acreditava era necessário.

Recordava com mágoa o fato do líder da distrital, à época, não ter tido a sabedoria capaz para dirimir as diferenças entre os dois candidatos de direita que ambicionaram a cadeira do poder em 1989. O seu gesto redundou na vitória da esquerda por 24 longos anos.

Obviamente que de nada adianta culpabilizar ou chorar sobre o leite derramado. Não, não é isso que fazia, o que fazia era história. Vinte e quatro anos era tempo suficiente para afirmar que havia erros que não mais deviam ser cometidos. Só isso. E o passado como um imenso espelho que se nos oferece devia iluminar o nosso presente, para dessa forma nos podermos projetar com dignidade no futuro.

Para terminar, será cruel ter o pássaro na mão e não o saber conservar por erros de cálculo, desvirtuamento de última hora ou quimeras impossíveis.

Sejamos pragmáticos: a política é a arte do possível, nada se inventa, há sempre a hora em que o líder tem a estranha função – porque só a ele esse poder pertence – de decidir. Quando é chegado esse momento, o resto nada importa, pois é um momento sagrado. E poder, é decidir.

 

In Zaida, José Carlos Silva

publicado por José Carlos Silva às 18:31 | link do post | comentar