A “GESTÃO DOS CONFLITOS” NA ESCOLA

1. (…) e o primeiro problema é apurar de que conflitos estamos a falar. Podemos estar perante conflitos a nível micro ou a nível macro, com origem dentro da escola ou fora dela, de natureza interpessoal ou de âmbito institucional. Quando se fala de gestão de conflitos, a própria palavra “gestão” está longe de ser neutra e, pela sua raiz tecnocrática, tende a centrar a causa das coisas no universo do indivíduo ou do individual. Disfunções de natureza individual seriam deslocadas para as relações interpessoais e nelas residiriam a causa e a solução dos problemas, isto é, dos “conflitos”. Trata-se de uma leitura simplistamente freudiana dos comportamentos, mas que tem a vantagem, para quem a defende, de atirar para o foro individual responsabilidades que claramente se situam fora dele, nomeadamente no âmbito social e/ou no das organizações. E não nos esqueçamos que uma escola não é um conjunto ou uma soma de pessoas individuais – uma escola é uma organização. Já Brecht denunciava num famoso poema que “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.

2. Para a definição e enquadramento do “conflito” temos de ter sempre presente que a escola é o que é porque a sociedade é o que é, ou seja, a escola não é mais do que um dos modos de organização produzidos por uma sociedade concreta, e seu reflexo. A escola, qualquer que seja a perspectiva pela qual a abordemos, é muito mais uma consequência do que uma causa. Não existe “a escola” e o “fora da escola” – o que existe é uma estrutura económica, social, politica, cultural, etc. de que a escola faz parte. Por isso os conflitos e a sua gestão dificilmente podem ser confinados aos muros da escola e, pelo contrário, têm de ser abordados num âmbito muito mais vasto. Por exemplo: é um equívoco que o estancar de duas clássicas fontes de conflito, como o são a indisciplina ou o insucesso escolares, passe pela adopção de medidas disciplinares ou pedagógicas de mera circunstância. Em casos excepcionais, sem dúvida, mas não como regra.

3. Vejamos a indisciplina e o seu inevitável companheiro, o insucesso escolar – fontes privilegiadas de “conflitos”. Ambos têm uma origem próxima na violência do modo de organização das nossas escolas e no mal-estar consequente, que tudo inquina – embora a generalidade dos nossos alunos e dos nossos professores nem sequer disso tenha consciência.

4. Em primeiro lugar, têm origem na brutal carga horária curricular, que a todos submerge. Se pensarmos que a vida escolar não pode esgotar-se na escola e que há sempre estudo a desenvolver em casa, então os nossos alunos vivem com um horário de trabalho digno dos operários da Revolução Industrial do século XIX. (O culminar deste absurdo atinge-se com as 70 horas semanais de trabalho, ao serviço dos míticos 18,84-valores-para-entrar-em-Medicina!). Trata-se de uma realidade opressiva e asfixiante, que não deixa tempo para nada, nem verdadeiramente para estudar, e que não pode senão constituir-se em fonte de “conflito” – um conflito mais surdo ou mais exteriorizável. A carga horária curricular clássica dos nossos alunos (as “aulas”) nunca deveria ultrapassar as 20 a 25 horas semanais.

5. Mas as coisas não ficam por aqui. Na verdade, na generalidade das nossas escolas, o processo de ensino/aprendizagem privilegia o “ensinar” em detrimento do “aprender”. A pergunta, de tão simples, dispensa a óbvia resposta: nós, Professores, estamos nas escolas para “ensinar” ou para que os alunos “aprendam”? Em termos de modos e ritmos de aprendizagem, todos sabemos que não existem dois alunos iguais, que não existem dois jovens iguais – mas o sistema obriga-os a que aprendam todos do mesmo modo e com o mesmo ritmo. Era como se nas lojas existisse um fato de uma medida única para todos os corpos, deixando nus todos a quem não servisse, isto é, quase todos. Um absurdo, sem dúvida – mas é assim que (não) funcionam as nossas escolas. Se esta situação não é fonte de “conflito”, então não sabemos qual possa sê-lo.

6. E depois da sobrecarga horária e do esmagamento da diferenciação – que apoios concedem as escolas a quem deles mais necessita, isto é, principalmente àqueles cujas famílias não possuem poder económico para suportar “explicações” no exterior? Com os constrangimentos atrás assinalados, as escolas pouco podem fazer, porque se encontram metidas num colete-de-forças – e, agora, com turmas ainda maiores, com limitações orçamentais, com mega-agrupamentos cada vez mais desumanizantes, as coisas não vão caminhar para melhor. Até porque atirar os apoios para cima dos alunos ditos com NEE (Necessidades Educativas Especiais) é olhar para a questão de modo afunilado – como se em algum momento, em alguma circunstância, em alguma disciplina ou em alguma matéria todas as crianças e jovens não pudessem necessitar de apoio especial.

7. Dito de outro modo: toda a criança, todo o jovem, é “especial”. Não entender isto é uma outra e tradicional fonte de “conflito” e, mais do que pessoal, é institucional. Por isso as (apenas) 20 a 25 horas de “aulas” que atrás assinalámos constituiriam a componente de currículo nacional, obrigatório para todas as escolas. Fora dessas horas, as escolas usufruiriam de autonomia para, apoiando todos os alunos, os conduzir ao sucesso escolar e socioeducativo. Não faz qualquer sentido que um aluno excelente a Inglês e fraco a Matemática continue com uma carga curricular igual à do colega que nesse âmbito é exactamente o seu oposto – garantidas que sejam, para um ou para outro, as 20 a 25 horas globais de aulas. Nas nossas escolas, os problemas essenciais pouco têm a ver com o espaço-aula – os problemas têm a ver com o antes ou o depois das “aulas”, e é aqui que a autonomia das escolas se deverá centrar. Também por esta razão, parece-nos justo dizer que, hoje, não existem professores a mais, o que existe é sistema educativo a menos! Dramaticamente a menos.

8. Como se acaba de ver, são muitas as fontes de conflito próximas e imediatas – embora nem sempre visíveis para todos. Mas depois existem as restantes, que se relacionam com o nicho socioeconómico ou com a sociedade onde a escola se insere e de que emana. Por isso o “conflito”, embora por vezes casuístico, não pode ser abordado de forma redutora – ou então a solução não será mais do que aparente e, a prazo, inconsequente.

9. Ao contrário do que alguns afirmam, o insucesso escolar e a indisciplina, hoje, não são maiores do que nos anos ’60 e ’70 do século passado, isto é, antes do 25-de-Abril – se, para os alunos, tomarmos como referência o mesmo universo económico, social e cultural. A escola de então era, na generalidade, uma escola para uns poucos e feita à sua medida, pelo que não era de espantar que as coisas corressem bem. Mas a escola, felizmente, abriu-se para todos depois do 25-de-Abril – e, entrando lá todos, entraram com eles todos os problemas. E a escola viu-se a braços com a impossibilidade de lhes dar resposta! E daí os profissionais da “gestão de conflitos” – como se este fosse um problema de “gestão”. Já vimos que o não é, e que não é possível construir um muro que impeça que os problemas do lado-de-fora-da-escola passem para o lado-de-dentro – pela simples e óbvia razão de que estamos perante um todo, em que não existe o “dentro” e o “fora”.

10. Num país com quase 900.000 desempregados, com milhares de licenciados em caixas de supermercado ou com vencimentos de 500 euros, com uma taxa de desemprego a rondar de facto os quase 20%, com mais de 20% das pessoas em situação de pobreza e com outros 20% que aí se situariam se não fossem os apoios sociais – estamos a falar de 4.000.000 de pessoas em 10.000.000 de habitantes –, e sendo os nossos alunos filhos destas pessoas, é fundamental que pensemos sobre o que significa a expressão “gestão de conflitos” quando aplicada à realidade das nossas escolas. As escolas têm de estar atentas a estas situações? Certamente que sim – mas, demagogicamente, não se peça às escolas o que elas não podem nem devem dar ou, ainda pior, que resolvam problemas que de todo se situam fora do seu âmbito. Cuidado com o milagre da tecnocrática “gestão de conflitos”. Alertados conscientemente para tal, assumindo a sua parcela de responsabilidade, e não mais do que essa, as escolas e os docentes estarão em condições de trabalhar melhor, com o grau de autonomia que atrás referimos – e com o apoio concreto de uma equipa sociopsicopedagógica (real, não apenas no papel) constituída por docentes, pais, psicólogos, assistentes sociais, funcionários, e até alunos mais velhos…

José Calçada

Paredes, Maio. 2012

publicado por José Carlos Silva às 14:44 | link do post | comentar