Irreal

Amanhecera diferente de todos os dias que conhecera até essa manhã. Percebia-se uma subtil suavidade no ar que se entranhava no olhar doce de quem deambulava pela rua. Estranhamente o dia recusava-se a evoluir. Estático sorria a quem o cruzava num desenho de gente que perpetuava o desejo de sentir a saudade que invadia a terna presença da vida que fora ou existira e já não era. Havia quem apelidasse o momento de saudade. Ele não. Ele olhava aquele momento como algo raro, mas nunca um rasto de saudade.

Era curioso. A vida perseguia a memória das coisas numa infinidade horrorosa de quereres e sentimentos. Assistia a um deambular ininterrupto de pessoas, um deambular de sorrisos, um deambular de acenos, um deambular de caminhares, um deambular de gestos, um deambular de gritos na manhã, um deambular de silêncios amarfanhados por uma trituradora imensa de vozes aglutinando a vontade de entender o quotidiano.

Nunca entendeu, mesmo quando lograva entender ou intuía, logo percebia que não lograra entender e que a condição humana ainda não ousara o limiar da sageza e da beleza suprema que o universo no seu todo triunfal oferece.

Na verdade, verdade mesmo, a procura da limpidez do olhar convertia-se em sonho de luz ou, porventura, em caminhada de aventura de desejo e paixão. Neste estádio entroncava o amor ou a sua similitude.

Naquela manhã, não existia olhar que se perpetuava num emaranhado nevoeiro impreciso de vontades inertes numa plêiade de saudade que ele teimava em reunir numa só saudade. Era tão português! Era um sentimento que o percorria insistentemente, sem agruras, sem desilusões ou outro tipo de desamores. Persistiam, sim, uma infinitude de pequenas razões, pormenores sem importância ou riscos aparentes de desejos vincados nos olhares do tempo, no teu olhar, e as incertezas dóceis do teu olhar perdidas na paisagem maldita de um único destino.

Surge um itinerário – rio invisível num pensamento diluído -, força maior que tem de ser cumprida ou jamais o destino será desenhado na conformidade da razão. Invoca-se Deus e O Menino e tudo continua igual a si mesmo, sendo a linha de pensamento diversa da linha da vida e o seu rumo um emaranhado difuso de consequências inauditas e gritos exauridos de espanto e dor. Por fim a entrega ao desconhecido na ilusória certeza que o sonho conquista a irrealidade do tudo.

Já não chove.

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publicado por José Carlos Silva às 14:03 | link do post