Foi-se o sonho.

Aborrecia-o o verão e as férias. Ele entrava em descanso desencontrado ao da mulher. Era curioso: a função pública até nas férias fugia ao ritmo do particular. Durante o resto do ano reinava com o assunto, mas chegado a julho e agosto aborrecia-se com a situação, pois só ao fim de semana contava com a mulher e paradoxalmente o fim-de-semana absorvia-a como se de uma esponja se tratasse. Um ciclo infernal.

Os filhos, homens feitos, a instruírem-se por esse mundo fora, organizavam os seus próprios roteiros de férias, esquecendo do pai e da mãe.

Nesses dias de morrinha, José Lucas da Capitolina, mais conhecido pelo Zé da Rua Direita, dormia sempre até mais tarde, despertava com dores de cabeça – fruto das muitas horas de sossego, dos finos emborcados e do frenesim das conversas e da música sem fim da esplanada do Café Tinoco -, que só vencia após um demorado e retemperador banho de chuveiro e um café bem curto, acompanhado de uma peça de fruta, por norma uma maçã, daquelas vermelhas, raiadas de traços escuros, suculenta e saborosa.

Depois atirava-se ao computador, à escrita das dores do dia no diário que sustinha desde que se conhecia como gente. E quando batiam as doze badaladas na torre da igreja deixava tudo, cruzava a rua procurando o Quincas, o único restaurante de Ribeira Seca.

Invariavelmente serenava a fome ou a vontade de comer com o prato do dia e não passava de trocar as habituais doces palavras com a Nocas Pistoleira, a empregada de mesa que adorava desafia-lo mas que na hora da verdade, do verdadeiro desafio, largava tamanha gargalhada deixando-o sempre completamente desorientado.

Findo o almoço pousava longo tempo na esplanada a apreciar as belas franganotas que por ali se pavoneavam. Na verdade também por ali se podiam ver belas espécies de todas as faixas etárias e de diversas condições.

Naquela terça-feira a esplanada do Tinoco achava-se muito bem composta, sendo a meia-idade prevalente. A um canto, precisamente no canto esquerdo, um grupo de pessoas debruçava-se sobre assuntos dignos de atenção.

O Zé da Rua Direita direcionou a sua atenção para aquele canto, para aquele grupo e para aquele assunto. E percebeu: o tema era a política! Que interessante! Na atualidade era muito raro discutir política numa esplanada em tom sério! Interessante!

Reparou que o mais velho grupo, pelo menos assim o aparentava, era chamado de João Sonhador e era o que mais ouvia e o que já no fim de todos falarem fez a síntese daquele interessante debate:

- «Este é um tempo incerto. A vida esconde-se atrás de um sorriso cinzento e pardacento, mas não sorri. Esgota-se o dia no olhar perdido de outros olhares. Há a esperança à deriva, perdendo-se, esquecendo-se, sem saber o seu destino.

É necessário sorrir, sorrir mesmo na tristeza, sorrir mesma na dor, sorrir mesmo na descrença, sorrir, apenas sorrir. Tentar sorrir, eu sei que nem sempre é possível, pois há sempre um esgar que persiste no olhar e se perde em horizontes de nuvens firmadas em sucessivos desprazeres. E há o sonho que já não persiste no meu sonho, no vosso sonho. Foi-se.»

 

publicado por José Carlos Silva às 17:16 | link do post | comentar